A origem do grafismo em gota é remotíssima e de significados vários, que lhe foram sendo atribuídos em épocas distintas. Acho que nenhum outro desenho tem uma história tão complexa como o kashmir, nome da região que o popularizou em seus tecidos de lã finíssima, quando era o padrão mais executado nos teares do vale da Caxemira, no norte da Índia, a partir do século XVI. Tanto a lã de excelente qualidade quanto a padronagem se tornaram extremamente valorizados no ocidente. Seu nome original no entanto é “safavidia”, e surge na Pérsia do século XIV, como ornamento, durante a dinastia Safavid (1501-1736), e sua forma de semente ou lágrima era utilizado em composições florais. A origem dessa figura remonta ao surgimento do zoroastrismo, no século VI a.C, sendo um de seus símbolos (representava a natureza e os seres vivos). Sua forma, no entanto, ainda não estava definida como conhecemos hoje.
Cunha portuguesa em formato de kashmir /Séc. XVIII Chita de Alcobaça com barrado de kashmir /Séc. XIX
Levado para a Índia e Paquistão pelos parsis, persas zoroastristas que se estabeleceram nessa região por volta do século XV, esse grafismo ganha o nome de “buta” (com flores) e tem uma forma de folha, pontuda em uma lateral e arredondada em outra, lembrando mesmo uma semente, e ainda hoje é executado assim em algumas regiões do Paquistão. Sua forma definitiva, com uma ligeira inclinação da figura e uma voluta em espiral na extremidade pontuda, será uma homenagem dos parsis, que passaram por grandes dificuldades em sua chegada a Índia, à “mankay”, termo da língua tamul que denomina nossa conhecida e popular fruta manga (sagrada para os indianos, já que floresce e frutifica nas monções e fora delas, nos tempos secos).
No formato da semente e da fruta da manga, o buta ganha sua forma definitiva e passa a ser executado com ornamentos de flores e folhas, representando abundância e prosperidade. Sua estampa é usada em festas no início das colheitas e simboliza a fartura para os povos do sudeste asiático. Sua chegada no ocidente precede os tecidos e xales de lã da Caxemira, trazidos pelas damas européias oitocentistas, pois já no século XVII tecidos importados pelos navegadores europeus da Ásia já apresentavam esses motivos (os “pintados” indianos, entre outros). A partir do século XVIII tecidos começam a ser fabricados com essa estampa na cidade escocesa de Paisley, que legou seu nome ao padrão produzido na Europa. Foi um verdadeiro hit da moda belle époque, ornando desde vestidos e bolsas femininas até acessórios masculinos, como lenços e gravatas. Um diamante lapidado nesse formato enfeitava o pescoço da dançarina exótica e dublê de espiã Mata Hari (essa jóia recebeu o nome de “Olho do Sol”, em homenagem a sua glamourosa e desafortunada dona)*.
Mas, “quem conta um conto, aumenta um ponto”, e essa bela figura já recebeu inúmeras interpretações, algumas poéticas, como sendo o “punho de Krishna”, outras filosóficas, inclusive representando uma das polaridades do símbolo chinês Ying-Yang, as forças centrífuga e centrípeta que produzem a energia vital, e outras bastante simplórias, como a que determina que fosse a forma do punho fechado impresso por artesãos em tecidos. São todas belas estórias, e não passam disso.
O buta, ou kashmir, ou paisley é a magnífica representação de um fruto, e quem já viu uma frondosa mangueira carregada de suas frutas, seja aqui ou na Índia, entende plenamente seu significado.